O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento recentemente (29/11/16) de que praticar aborto nos três primeiros meses de gestação não é crime.

A decisão se refere a um caso específico ocorrido no Rio de Janeiro.

Em que a mulher não ganhou o direito de abortar, mas de não ficar presa pelo aborto que cometeu.

Apesar de ser um caso isolado reacendeu uma discussão polêmica sobre um assunto que mexe com aspectos políticos, religiosos, de bioética e de saúde.

Deixando de lados os aspectos religiosos e levando em conta apenas o científico, vamos entender melhor o assunto:

Para começar, o que é vida?

Embora a gente passe a nossa vida escolar toda ouvindo que ser vivo é qualquer organismo que nasce, cresce, se reproduz e morre, definir o que é vida talvez seja um dos conceitos mais difíceis da biologia.

Há múltiplas tentativas de definições de vida disponíveis na literatura científica.

Cada uma mais adequada para uma área específica de conhecimento.

Vamos trazer aqui quatro perspetivas do que é vida.

Vida como autopoiese

A autopoiese do grego auto “próprio”, poiesis “criação”.

Foi o termo criado na década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios.

Ou seja, consiste em uma ideia de uma organização circular como atributo definidor dos sistemas vivos.

A vida seria um sistema de redes de interações de componentes fechados em termos organizacionais, mas aberta em termos materiais e energéticos.

Ou seja, ela está sempre trocando matéria e energia com o ambiente externo.

Vida como seleção de replicadores

Na teoria evolutiva neodarwinista a vida pode ser entendida como capacidade dos seres vivos de produzirem cópias de si mesmos.

As quais mantém suas características genéticas básicas através das gerações.

E de, ao mesmo tempo, sofrerem modificações genéticas advindas dos processos de mutação e/ou recombinação, evoluindo com o passar do tempo (Mettler & Gregg, 1973).

Vida como interpretação de signos

A biossemiótica é um campo de conhecimento novo na filosofia da biologia.

E procura compreender a vida não apenas pela organização das moléculas, mas também pela interpretação de signos na natureza.

Ou seja, trata-se de uma maneira de entender a vida biológica como um fenômeno semiótico sustentado principalmente na teoria de Charles Sanders Peirce (1839-1914).

Um signo se refere a alguma outra coisa, em algum de seus aspectos.

O efeito de um signo sobre o sistema que o interpreta é chamado de interpretante.

Dessa forma, a ação do signo (semiose) ocorre por meio de uma relação triádica entre o signo (elemento que media a relação entre objeto e interpretante), um objeto (o que é representado no signo) e um interpretante (o efeito do signo sobre o intérprete).

A origem da semiose no mundo vivo coincide com o aparecimento das primeiras células.

Ou seja, de membranas que separavam um ambiente interno (intracelular) e um ambiente externo (extracelular).

Assim, baseando-se no conceito de signo e na ação do signo podem-se estudar organismos e como eles interpretam seu ambiente.

Vida como sistemas autônomos com evolução aberta

Nessa definição, procura-se relacionar a ideia de que os seres vivos são redes de interações complexas.

E que se auto mantém (o que se aproxima da noção de autopoiese) com os processos seletivos e evolutivos.

Ou seja, nessa rede de interações os seres vivos aprendem determinadas formas de registros de informação (que pode ser a própria estrutura e vias de interação, e não apenas o DNA).

E essas informações podem ser passadas às gerações seguintes, permitindo que os sistemas vivos sejam selecionados ao longo do tempo.

A vida poderia ser elucidada como qualquer sistema autônomo com capacidade evolutiva aberta (open-ended evolutionary capacity) (Ruiz-Mirazo, Peretó & Moreno)

Essa definição acaba abrange a ideia de rede de interações presente na teoria da autopoiese e a noção neodarwinista de vida.

Não há um consenso claro do conceito, assim na discussão sobre o aborto questão é quando começa a vida?

Ou  quando a vida começa a importar moralmente?

O desenvolvimento do feto

aborto
Aos 3 meses (por volta da 9° semana) é o tempo de gestação sugerido como tempo máximo para realização do aborto no projeto de lei sugerido pelo deputado Jean Wyllys.

Nesse período o embrião se torna um feto.

O período fetal de desenvolvimento está relacionado com o crescimento do corpo.

E também com a diferenciação dos tecidos, órgãos e sistemas.

As principais características do feto nesse período são: pálpebras fechando-se ou fechadas; cabeça arrendondada, genitália externa (identificável como masculina ou feminina no final do 3° mês inicio do 4°) e intestino na parte proximal do cordão umbilical.

Nesse período o ganho de peso é considerável e a partir da 10° semana começa a maturação e crescimento dos órgãos e sistemas do feto.

Sobre o aborto

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define aborto inseguro como o procedimento utilizado para interromper uma gravidez, realizado por pessoas não-habilitadas ou em ambiente não-adequado.

Abortos inseguros ocorrem em países onde as leis são restritivas ao procedimento.

Ou naqueles onde é legal, porém, o acesso das mulheres aos serviços de saúde é dificultado.

A distinção entre aborto seguro e inseguro é importante pelas diferentes implicações à saúde das mulheres.

Ou seja, do ponto de vista da saúde pública.

Mundialmente, a prevalência de aborto inseguro é estimada em 19 a 20 milhões.

Dos quais 97% pertence a países em desenvolvimento.

Em 2000 ocorreram 14 abortos induzidos por 1.000 mulheres entre 15 a 44 anos.

A maior prevalência é para a América Latina com 20 abortos por 1.000 mulheres entre 15 a 44 anos.

Os 19 milhões de abortos realizados anualmente de forma insegura no mundo resultam em aproximadamente 68.000 mortes de adolescentes e mulheres adultas, representando 13% de óbitos maternos.

Na América Latina e no Caribe, o aborto é responsável por 12% da mortalidade materna.

E é a quarta causa dos óbitos por estas causas.

Embora em algumas regiões da América Latina seja responsável por 30% delas.

No Brasil, persiste uma importante subnotificação das mortes por aborto.

Já que muitos óbitos devido à septicemia e hemorragia decorrentes de complicações de abortamentos não são devidamente computados.

Apesar dessa subnotificação, um estudo nas capitais brasileiras realizado em 2002, permitiu identificar que o abortamento correspondia à terceira causa de morte materna (11,4%).

A magnitude do abortamento inseguro por aqui não é conhecida com exatidão.

Isso porque devido a seu caráter ilegal, muitos são realizados clandestinamente.

Já que o aborto só é permitido em caso de estupro ou risco de vida materno.

Nos casos de malformações fetais (acrania e, especialmente, anencefalia) e condições incompatíveis com a vida extrauterina, o aborto tem sido realizado no país apenas após autorização judicial.

As mortes por aborto atingem preferencialmente mulheres jovens

Principalmente de estratos sociais desfavorecidos, residentes em áreas periféricas das cidades.

Isso significa que apenas pessoas pobres realizam aborto? Não!

Significa que quem tem mais dinheiro pode realizar esse procedimento fora do país.

Ou com recursos que a maioria da população não tem acesso.

Logo, este é sim um problema de saúde pública.

Dessa forma, o que precisa de discussão não é o mérito de ser certo ou errado.

O projeto de lei 882/2015 propõe que as mulheres que queiram fazer aborto tenham o acompanhamento.

Tanto de um médico(a) ginecologista, quanto de um(a) psicólogo(a), um(a) enfermeiro(a) e de um(a) assistente social.

E se mesmo após o acompanhamento da equipe multidisciplinar, ainda optar pelo aborto seria necessário assinar um termo de consentimento expresso.

O projeto prevê ainda que os médicos que manifestem objeção de consciência podem se recusar a fazer o procedimento indicando um outro profissional.

E que seja explicado para a paciente os procedimentos que serão realizados.

A intenção do projeto é diminuir  o número de mortes que ocorrem na hora e após o aborto por procedimentos irregulares

Mas como no Brasil as coisas nem sempre funcionam como deveriam, esse projeto de lei precisa ser amplamente discutido.

Diferente das discussões acaloradas das redes sociais, o que deveria estar em pauta é se serão dadas condições seguras desse procedimento ou não, a questão moral de certo/errado cabe a cada um.

Projetos de interrupção voluntária existem desde 2006.

Assim como os demais, o projeto de lei 882/2015 está parado desde junho de 2015.